Em tudo quanto é canto: orgulhos e preconceitos
Luis Emanuel Fontana Calixto
Quantos anos o senhor tem?, perguntei logo no começo.
87 anos, respondeu Seu Deolindo.
O quê?!, gritou Dona Cida, sua esposa, da cozinha.
Oi-ten-ta-e-se-te!!!, respondeu Deolindo, no grito.
Ah, tá! Ha-ha, pensei ter ouvido outra coisa.

Entre o antes e o agora, Seu Deolindo passou por grandes mudanças e aprendizados. Foto: Luis Emanuel Fontana Calixto
Seu Deolindo Daniel Amâncio, que costumava ser conhecido como Jabá, nasceu nos dias 3 e 6 de janeiro de 1937. O que houve foi que, na documentação, o nascimento foi registrado três dias depois. Filho de mineiros, José e Adelaide Amâncio, irmão de três homens e uma mulher, negro, nascido em Assaí (PR), em um lar agradável que “toda vida foi bom”. “Quando meu pai morreu, eu estava com 14 anos. Minha mãe sofreu para nos criar, ela batalhou e estamos firmes agora, graças a Deus”, conta Deolindo.
Conheceu a esposa, Dona Cida, com quem está casado há 67 anos, nas festas da igreja que frequentava. Estava com os amigos, alguns noivos e outros em namoro, que zoavam dele por estar solteiro. Um dia, Dona Cida passou, o amigo foi conversar com ela e pronto. Com mil-e-umas meninas numa festa, era aquela lá e deu certo. “E no fim eu casei e nenhum dos outros casou com quem namorava”, brincou Deolindo. (Nós dois rimos). O casal teve quatro filhos, Paulo Roberto, o mais velho, Marco Aurélio, Luis Renato e Washington Luis, que faleceu em 2023. “Foi duro, viu?”. Até hoje é.

Deolindo e Dona Cida vivem suas jornadas um ao lado do outro há mais de 60 anos. Foto: Arquivo Pessoal
Na flor da pele
Deolindo menciona outras marcas da história. “O Brasil era a la vontê, né. Ainda havia ‘escravos’ naquela época, em Brasília”, relembra. Também conta que, quando morou em Londrina (Paraná), ainda havia a segregação racial nos municípios brasileiros. Saía com os colegas, e os amigos brancos, com os quais vivia colado, andavam numa calçada e ele com os amigos negros na outra.
Mudou-se para Guarapuava (Paraná), no final de 1963, quando ainda havia coronéis e fazendeiros que, de acordo com ele, mandavam aqui. Tanto os clubes desta quanto os de Londrina eram segregados. Seu Deolindo e Dona Cida frequentavam o Clube Rio Branco, criado por negros que permitia a entrada destes e de brancos que fossem “aliados”. “Eu gostava, o Rio Branco era para arrebentar”, conta Deolindo.
Durante um tempo, foi secretário do clube. Com os colegas que fez em Guarapuava, formou as escolas de samba “Esquadrão do Lobo” e “Unidos de Guarapuava”, pois na cidade apenas havia blocos, mas nenhum grupo formado. “Batia caixeta. Todos os instrumentos de couro eu gostava de tocar”, compartilha o sambista.

Deolindo, o sexto homem da esquerda à direita, marca presença na música guarapuava. Foto: Arquivo Pessoal
Sem volta
"Amigo é uma palavra muito pesada, porque quando você está numa boa, você está pagando para todo mundo, estão todos em volta de você", Deolindo afirma.
Durante muitos anos, a vida de Seu Deolindo foi ditada pela doença do alcoolismo. Não tinha controle sobre si mesmo, pelo temperamento e pelas palavras que dizia, mesmo que negasse isso. Certo dia, Dona Cida tinha uma consulta em Londrina. Deolindo e ela pegaram carona com os filhos, Paulo Roberto e Luis Renato, que os levaram até Ivaiporã. De lá, Cida pegou o ônibus cedo para Londrina. Em Ivaiporã, Deolindo tinha que pegar um carro que havia comprado, depois, buscaria Cida em Londrina e os dois voltariam para casa juntos.
Deolindo levava consigo um saco cheio de dinheiro em notas para realizar a compra. Quando chegou em Ivaiporã, parou na casa da tia. No momento em que entrou na porta, seu irmão, Jabázinho, chegou e disse que uma nova lanchonete estava sendo inaugurada, a Holandesa. Não havia passado 10 minutos na casa da tia e foi com o irmão e as primas ao local para encontrar velhos amigos boleiros e sambistas.
Todos conversavam quando o dono do bar, conhecido como Baiano, viu Deolindo e gritou para os fregueses: “esse crioulo está batendo muito papo. Qualquer coisa eu tiro ele para fora”, narra. Com 66 mil cruzeiros em dinheiro na sacola, despejou todas as notas sobre a mesa e disse: “dá uísque, cerveja e campari para todo mundo que o neguinho aqui vai pagar para vocês. Aí modificou o negócio, o dono me tratou diferente”, lembra Deolindo.
Depois disso, cantou e conversou até às 6 horas da manhã. Outro velho amigo passou para encontrá-lo, dirigia um caminhão carregado de sementes de algodão. Os dois se abraçaram depois de 11 anos sem se verem. “Veja o que o álcool faz. Virei para ele e perguntei onde ia. Disse que ia para Bahia e me convidou, eu disse ‘vambora’. Esqueci da minha família. Deixei a Cida em Londrina e a oficina em que eu trabalhava para os meus filhos e os empregados cuidarem”, revela Deolindo, com pesar. Voltou para Guarapuava apenas depois de três meses e três dias, cansado e sem nada.
Quando voltou para casa, Dona Cida não falou nada, o tratou como se nada tivesse acontecido, mas os filhos não. No tempo que prosseguiu, não olhavam mais para ele, disse que não pediam benção e nem davam tchau. “Um dia eu me estressei, falei em voz alta ‘que negócio é esse? Passa aqui e não fala comigo, fala só com a mãe. Chega disso ou eu vou dar meus pinotes de novo’. Quando eu acabei de falar, Luis Renato respondeu: ‘o senhor já fez e quer fazer, as portas da casa estão aí abertas. Pode ir, não vai fazer falta’”. Segundo ele, estava sóbrio no momento e isso o tocou. O filho tinha razão. Depois disso, começou a voltar para casa direto da oficina que trabalhava, sem frequentar mais bar nenhum.
Passou o tempo, o filho e dois amigos de Deolindo o convidaram para participar da reunião dos Alcoólatras Anônimos (AA) da Igreja Santa Terezinha. Já havia frequentado oficinas sobre alcoolismo para tentar largar a bebida, mas sempre voltava para casa e bebia ainda mais. Disse que vivia com a geladeira cheia, mas aceitou o convite.
Na reunião, cada pessoa que chegava eram amigos que costumavam beber com ele no bar. Mais de 40 pessoas compareceram. Mencionaram à frente dos membros que a pessoa que estava lá pela primeira vez era sempre a pessoa mais importante. “‘O companheiro Jabá’, me chamaram. Eu falei ‘Jabá, nada. É Deolindo!”, fui lá na frente e não sabia nem falar (risos). Eu disse ‘pois é, eu também tomava um golinho assim’”, disse, juntando o polegar e o indicador num gesto de pouco. “E todo mundo riu lá dentro”, falou Deolindo com um sorriso no rosto.
Atualmente, Deolindo viaja para outros municípios com frequência para participar de reuniões e dar palestras nos encontros do AA. Por 15 anos, atuou como coordenador sobre álcool e drogas na penitenciária de Guarapuava. “Muitos que saíram de dentro da penitenciária estão em grupos do AA, aqueles que se interessaram, estudaram e se formaram. Eles se entregam e pronto”, compartilha Seu Deolindo.
Nesses 87 anos, o mundo mudou muito rápido, assim como as diversas fases da vida de Deolindo, que constroem o que ele é hoje. Para ele, seus filhos agora são os seus pais, pois cuidam do casal. Todos conquistaram muitas coisas das quais ele se orgulha. A família que construíram é algo pela qual ele preza muito. Vive com a Dona Cida, participa de festas, assiste o filho Marco Aurélio tocar num grupo de samba e pagode, visita os filhos para ver os netos e bisnetos. Ao fim, mencionou a paixão pela cidade na qual viveu a maior parte da vida. “Vou para tudo quanto é canto, mas aqui é minha terra”, revela Deolindo.

Deolindo guarda diversas histórias nas memórias vividas nos últimos 87 anos. Foto: Luis Emanuel Calixto /Arquivo Pessoal


