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Viviane Almeida Moreira 

"Apenas um beijinho de boa noite"

O abuso sexual infantil e as consequências a curto e longo prazo.

             Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”.
            O abuso sexual infantil é algo que está cada vez mais em pauta na sociedade, mas apesar disso, ainda está longe de ser combatido ou minimizado.
Muitas são vítimas silenciosas e o agressor é alguém próximo. Segundo dados da Fundação Abrinq, a cada 24 horas, o Brasil registrou 124 denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes em 2022. De acordo com a pesquisa, a cada quatro vítimas em território nacional, três são crianças ou adolescentes.

             Muitos inocentes sofrem, pois essa violência sexual, que afeta meninos e meninas de diferentes classes sociais, raças e etnias, adentra espaços domésticos, familiares e escolares.
             Nos quatro primeiros meses de 2023, foram registradas, ao todo, 69.300 denúncias e 397 mil violações de direitos humanos de crianças e adolescentes, das quais 9.500 denúncias e 17.500 violações envolvem violências sexuais físicas – abuso, estupro e exploração sexual – e psíquicas.
             Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2023, das 204 milhões de crianças com menos de 18 anos, 9,6% sofrem exploração sexual, 22,9% são vítimas de abuso físico e 29,1% têm danos emocionais. Os dados mostram que, a cada 24 horas, 320 crianças e adolescentes são explorados sexualmente no Brasil
– no entanto, esse número pode ser ainda maior, já que apenas 7 em cada 100 casos são denunciados. O estudo ainda esclarece que 75% das vítimas são meninas e, em sua maioria, negras.
             Esse problema muitas vezes torna-se difícil de ser combatido de forma eficaz, pois é muito complexo para ser discutido, principalmente dentro das famílias, ambiente no qual deveria ocorrer um diálogo aberto sobre o assunto para que haja mais informações de como a criança deve se proteger e denunciar. Infelizmente, é
nesse ambiente que ocorre a maioria dos casos.

“Na época não sabia muito a respeito, mas eu acabava fazendo as vontades”

Paulo, 24 anos.

             Abuso sexual infantil é o termo utilizado para nomear qualquer ato sexual que envolva crianças ou adolescentes, desde carícias e toques íntimos, masturbação, exibicionismo e voyeurismo (observar fixamente atos ou órgãos sexuais de outras pessoas, com o objetivo de obter satisfação sexual), penetração vaginal, anal ou oral, entre outras práticas que podem ou não envolver contato físico. Praticado, na maioria das vezes, por familiares ou pessoas do círculo de convivência da criança e do adolescente, ele compreende uma série de práticas sexuais que podem ou não envolver contato físico. Sentimentos de medo, vergonha e até mesmo culpa pela ocorrência do ato, além de fatores como vulnerabilidade social e econômica, fazem com que  muitas situações de abuso sequer sejam reveladas. O abuso pode ocorrer de duas formas: sem contato físico - conversas sobre atividades sexuais, assédio (propostas de relações sexuais por chantagem ou ameaça), exibicionismo, voyeurismo (observar fixamente atos ou órgãos sexuais de outras pessoas, com o objetivo de obter satisfação sexual) ou exibição de material pornográfico à criança ou adolescente; e com contato físico - tentativas de relações sexuais, toques, beijos e carícias nos órgãos genitais e demais regiões erógenas do corpo, masturbação, penetração vaginal e anal e sexo oral.

“Eu tinha muito medo de contar pra alguém e ele fazer alguma coisa para mim”

Melissa, 32 anos.

             Na maioria das vezes, os predadores chegam de forma amigável, oferecendo presentes ou carinho. É o que relata a música Pedofilia, da banda Titãs. Na canção, a narrativa impactante descreve a manipulação utilizada por um adulto para abusar de uma criança. Em suas falas, o abusador tenta normalizar seu comportamento como um segredo entre ele e a vítima. A letra revela as táticas comuns usadas por abusadores para silenciar e enganar as crianças: “Ele disse: 'eu tenho um brinquedo. Vem comigo, que eu vou te mostrar'; Ele disse: 'isso é só entre a gente e não é para ninguém escutar'.  Eu não vou fazer nada de errado, eu te juro. Vem aqui, vamos nos conhecer. Vem aqui, fica aqui do meu lado, no escuro. Eu prometo cuidar de você'”.

“Sei que isso foi um dos motivos da minha saúde mental ser uma merda”

Julia, 28 anos.

              A criança que passa por algum tipo de abuso sexual pode ter reações a curto e longo prazo. “A infância é um período de desenvolvimento carregado de amadurecimento fisiológico que inclui também a maturação de regiões e funções do cérebro. Os impactos a curto prazo podem se dar no desenvolvimento emocional, cognitivo, comportamental e social da criança, podendo demonstrar isso com dificuldades na aprendizagem, mostrar alguns comportamentos inapropriados, ter dificuldades com outras crianças ou adultos, demonstrar comportamento sexual inapropriado, entre outros. A longo prazo pode desenvolver quadros de depressão, transtornos de ansiedade, alimentares e dissociativos, entre outras psicopatologias. Já na adolescência, os sintomas mais comuns são: depressão, isolamento, comportamento suicida, autoagressão, abuso de substâncias e comportamento sexual inadequado”, explica o psicólogo Gabriel Andrade.

             Segundo o especialista, uma situação de abuso pode ser um facilitador para o aparecimento de psicopatologias graves, prejudicando a evolução psicológica, afetiva e social da vítima, podendo se manifestar de várias maneiras e em qualquer idade da vida. Caso não haja um acompanhamento, os sintomas na vida adulta podem ser mais difíceis de conseguir lidar do que se acompanhado desde a infância, cada caso é diferente e é necessário levar em consideração toda a situação em que a criança está envolvida.

"Não é fácil saber toda a verdade e ter de lidar com ela constantemente”

Neil, 18 anos.

              Mesmo sendo uma temática difícil de ser trabalhada, ainda há alguns métodos para serem utilizados tanto para evitar quanto para amenizar a mente da vítima abusada. Uma dessas metodologias é a psicoterapia. “Levando em consideração que a principal forma de a criança se expressar é com a brincadeira, a psicoterapia para crianças envolve o brincar como principal método intervenção, por meio dela é que se desenvolve um ambiente acolhedor e de escuta para intervir da forma necessária em cada situação", explica Gabriel.

              Além disso, é possível haver uma intervenção no ambiente escolar, local onde a maioria das crianças está inserida. Isso pode ser feito através da propagação de informações com a educação sexual, para que a partir da conscientização se forme um trabalho com o equipamento que for necessário, como encaminhamentos para que essa criança seja assistida. Ainda há outras formas de intervir, como palestras, banners informativos, entre outros. “É possível apoiar a criança através do máximo de informação e ações educativas para toda a comunidade, professores, estudantes, escolas para que o máximo de pessoas saibam o que fazer e como identificar. O modo de acompanhar após a denúncia é manter contato e articulação com os equipamentos que fizeram o atendimento, se precavendo e tendo certeza que as medidas foram tomadas, diretamente com o Conselho Tutelar, por exemplo”, explica a assistente social, da área educacional, Tania Paz. A profissional atua há mais de 7 anos com crianças, adolescentes e jovens, por meio de capacitações.

Mistérios da Carne (2004) -  o audiovisual na conscientização

               Outra forma de conscientizar também é através do uso do audiovisual, unindo a informação ao entretenimento, como forma de abrir a mente, principalmente dos adultos, para falarem sobre o ocorrido. Para Gabriel, os filmes atuam nesse cenário como uma forma de conscientização para temas complexos e que devem ser debatidos. A linguagem do cinema é importante para colocar o “dedo na ferida" desses temas, pois pode gerar a revolta e consequentemente a ação, claramente com um olhar empático, levando em consideração que o tema é uma violação dos direitos.

               Um exemplo disso é o filme Mistérios da Carne (2004), de Gregg Araki, que relata a história de dois jovens, Brian Lackey (Brady Corbet) e Neil McComick (Joseph Gordon-Levitt), que jogavam em um mesmo time de baseball e, aos 8 anos de idade, foram abusados sexualmente pelo treinador. Ambos tiveram diferentes consequências ao longo dos anos. Neil se descobre homossexual, passa a exercer a vida sexual com muita intensidade, torna-se garoto de programa, cria uma obsessão cada vez maior pelo treinador e prefere se relacionar apenas com homens mais velhos. Brian acredita ter sido abduzido por alienígenas na infância, não se lembra do ocorrido, mas sabe que viveu algum trauma. Quando seus caminhos novamente se cruzam, eles descobrem que as memórias mais importantes de suas vidas não são o que parecem.

               Em Guarapuava, há programas especiais para ajudar no combate a esse tipo de violência. Segundo a assistente social Tania, na cidade há o Conselho Tutelar em Polo I e II e a Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente, que são compostos por vários equipamentos e instituições públicas e não governamentais que atendem crianças e adolescentes da cidade, em particular aquelas que estão em situação de vulnerabilidade social. “Além disso, também há o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (Comdica), que é o principal órgão colegiado composto de entidades governamentais e não governamentais, bem como membros da sociedade civil e que atuam frente a defesa e garantia dos direitos das crianças e adolescentes”, pontua. A assistente social salienta que, na menor suspeita, havendo ou não provas ou testemunhas, deve ser feita uma denúncia para o Conselho Tutelar pelos números: Polo II: 3142-0550 Polo I: 3142-0561.

“Por muito tempo continuei envergonhada por achar que a culpa tinha sido minha”

Carol, 41 anos

               Um estudo do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) de 2017 mostrou que apenas 1% das meninas vítimas de violência sexual com menos de 20 anos chegam aos hospitais, no mundo todo. Muitas não denunciam por medo ou até mesmo indiferença. De acordo com a Agência Senado, o PL 2.892/2019, do senador Styvenson Valentim (Podemos-RN), prevê que qualquer pessoa que tenha testemunhado prática de violência sexual contra criança e adolescente deve comunicá-la imediatamente às autoridades policiais, Ministério Público, conselho tutelar, gestor escolar, gestor hospitalar ou médica e quem deixar de avisar às autoridades poderá receber pena de detenção, de um a seis meses, ou multa. Além disso, aliciar, assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de comunicação, criança, com o fim de com ela praticar ato libidinoso leva à pena de reclusão de 3 a 6 anos e multa.

              Tania explica como funciona o ECA e quais são os artigos que norteiam os aspectos relacionados ao abuso e à violência. “O Estatuto da Criança e do Adolescente é a primeira lei e mais importante no quesito proteção e defesa dos direitos das crianças e adolescentes. Ali estão contidos todos os aspectos que é dever da família, do estado e da comunidade, no que diz respeito à vida desse público. O ECA diz que a criança e adolescente são sujeitos em particular desenvolvimento e fase de vida, pela qual justifica a necessidade e importância de ser atendida e tratada pelas políticas públicas como absoluta prioridade”, salienta.

              Para além do ECA, também há leis que são essenciais, a fim de fortalecer o que o estatuto já diz, por exemplo:

- Lei 14.344/22: estabelece medidas protetivas específicas para crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica e familiar e considera crime hediondo o assassinato de crianças e adolescentes com idade inferior a 14 anos;

- Lei 13.010/14: altera o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.064/90) ao mudar a redação do artigo 13 e acrescenta novos artigos: 18-A, 18-B e 70-A. Essa lei também é conhecida como Lei Menino Bernardo e trata de uma legislação que garante uma educação sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel e degradante;

- Lei 14.432/22: instituiu a campanha Maio Laranja, para promover ações de enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes.

              Quando é feita a denúncia, o Conselho Tutelar é o órgão responsável pela proteção e defesa da criança e ou adolescente. É ele quem vai agir frente aos órgãos judiciais competentes para a proteção, defesa e garantia da vida e da segurança da criança, com mandados de busca e apreensão do agressor e também da retirada dela do meio familiar, se for o caso.

Números para denúncia:

  • Polícia Militar - 190: quando a criança está correndo risco imediato;

  • Samu - 192: para pedidos de socorro urgentes;

  • Delegacias especializadas no atendimento de crianças ou de mulheres;

  • Qualquer delegacia de polícia;

  • Disque 100: recebe denúncias de violações de direitos humanos. A denúncia é anônima e pode ser feita por qualquer pessoa;

  • Conselho tutelar: todas as cidades devem ter conselhos tutelares. São os conselheiros que vão até a casa denunciada e verificam o caso. Dependendo da situação, já podem chegar com apoio policial e pedir abertura de inquérito. Em Guarapuava: (42) 3142-0561;

  • Profissionais de saúde: médicos, enfermeiros, psicólogos, entre outros, precisam fazer a notificação compulsória em casos de suspeita de violência. Essa notificação é encaminhada aos conselhos tutelares e polícia;

  • WhatsApp do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos: (61) 99656- 5008;

  • Ministério Público.

 

              Os trechos destacados ao longo do texto, são advindos de depoimentos de adultos que passaram pela experiência do abuso sexual na infância. Para conferir os relatos na íntegra, clique no link a seguir.

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