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Ilustração: Luis Calixto

Chelsea Karina de Brito e Luis Emanuel Fontana Calixto

"Caro Educador, aqui quem vos escreve é a precarização…"

Profissionais que trabalham para libertar seus alunos da realidade precária se vêem presos num sistema que os desmerece

          Em Escritores da Liberdade (2007), Erin Gruwell, professora de literatura inglesa, idealista e visionária, encontra o maior desafio de sua carreira ao lecionar em uma instituição precária, onde a violência e o crime são realidades comuns na vida dos estudantes. Assim, ela precisa se reinventar e desenvolver formas que extrapolam a profissão na abordagem com os alunos. 

       A obra, dirigida por Richard LaGravanese, adaptação do best-seller Freedom Writers Foundation, é baseada em fatos reais e discute principalmente o papel transformador dos educadores. Longe das telas de cinema, a realidade dos professores brasileiros possui semelhanças com o enredo do filme, principalmente nas dificuldades vividas pela personagem principal. Porém, o roteiro da vida real pode ser muito mais difícil. 

        O processo de precarização da profissão devido à remuneração baixa, violência em sala de aula, má infraestrutura e condições de trabalho, além do desgaste físico e mental dos docentes, são apenas alguns dos problemas do dia-a-dia desses profissionais. Uma pesquisa desenvolvida em 2024 pelo Instituto Semesp, entidade responsável pela elaboração do Mapa do Ensino Superior no Brasil, demonstra que profissionais com ensino superior completo que trabalham em áreas ligadas à licenciatura - docentes, pedagogos e outros - ganham em média 43,9% a menos do que trabalhadores de outras áreas.

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Cumprindo 40 horas semanais, professores do ensino médio ganham um pouco a mais que o salário mínimo atual.

           Cleverson Holocheski, 40, professor de Geografia no Centro Estadual de Educação Básica para Jovens e Adultos (CEEBJA), começou ali por conta da seleção no Processo Seletivo Simplificado (PSS) no Paraná e atualmente é concursado. Para ele, o aspecto financeiro é uma dificuldade ao lecionar. “Nossa profissão foi muito desvalorizada ao longo do tempo, não somos vistos como antes. Não houve nenhuma correção de salário, que está defasado há anos”, relata.

           Além de professor, Cleverson também trabalha como guincheiro. O serviço começou na família com seu pai e cresceu ao longo dos anos. Após conseguir a licenciatura em Geografia, passou a dividir o tempo entre as duas carreiras. Mora no município de Guarapuava (PR) com a esposa e os dois filhos. Às terças, quintas e sábados, dias em que não trabalha no escritório, acorda às 5 horas da manhã e viaja para a cidade de Pinhão (PR) dar aulas no CEEBJA. "Eu vejo meus filhos na quarta à noite e vou revê-los só no sábado de manhã, porque quando eu saio eles estão dormindo e quando eu chego eles estão dormindo", comenta o professor.

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Dividido nos dois empregos, Cleverson chega a ficar dois dias sem interagir com os filhos numa semana de trabalho. Foto: Luis Emanuel Fontana Calixto

            Esse conjunto de obstáculos faz com que uma nova barreira cresça na profissão: o desinteresse dos jovens em se tornarem professores. A baixa procura por licenciaturas, associada ao envelhecimento dos profissionais atuantes, gera a falta de docentes e sobrecarrega aqueles que se mantêm lecionando. De acordo com dados de 2022 do Instituto Semesp, se os índices de ingresso nas licenciaturas permanecerem da forma com que estão hoje, pode haver um possível déficit de 235 mil professores em todas as etapas da educação básica até o ano de 2040. Entre as áreas que podem ser mais afetadas pela situação, estão Biologia, Física e Química.

            Para traçar os perfis e os desafios dos professores da Educação Básica no Brasil, o Instituto Semesp demonstrou alguns números preocupantes com relação aos profissionais atuantes. Cerca de 79,4% dos docentes que participaram da pesquisa já pensaram em desistir da carreira em algum momento. Este dado reflete a situação que vivenciam, visto que mais da metade (52,3%) já passou por algum tipo de violência na escola, tais como verbal, física, assédio moral e intimidação, na maioria das vezes, por parte dos alunos ou responsáveis. Além da violência, há desafios intrínsecos à estrutura oferecida pelas escolas, como salas superlotadas, falta de mediadores para estudantes PCD’s, falta de equipe multidisciplinar, entre outras questões.

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Em quatro anos, diversos professores experienciaram situações de violência enquanto trabalhavam.

            Maria Clara Silva, 46, professora de Língua Inglesa, relata já ter vivenciado situações com alunos que a tenham ofendido verbalmente e com pais que delegaram a ela as próprias responsabilidades de educação dos filhos. Em escolas nas quais já lecionou, foi cobrada pelos superiores para que o desempenho dos alunos fosse mais alto que o possível em relação aos recursos oferecidos pelas instituições.

            Professora há 20 anos, pode vivenciar uma transição no ensino devido aos avanços tecnológicos e aos eventos em grande escala, como a pandemia de Covid. Em 2020, ela e seus colegas tiveram que se adaptar às plataformas e aplicativos por conta própria. Além do horário de trabalho, passava a noite assistindo videoaulas sobre como utilizar as ferramentas digitais.

            De acordo com Maria Clara, a falta de atenção dos alunos vem de antes da pandemia, os profissionais precisam dar aulas parecidas com shows para conquistar o foco dos estudantes. Para ela, os professores têm ficado cada vez mais sobrecarregados por responsabilidades que não são deles ou, ainda, pela falta de auxílio dos governos estadual e federal. Neste ano, alunos alfabetizados durante a pandemia pelo ensino à distância chegaram à sétima e oitava séries. "Tem alunos ali que não conseguem escrever numa folha de papel e isso fica por nossa conta", comenta a professora.

            Professor de ensino especial, Bruno Souza, 27, entendeu na prática a rotina estruturada que seus alunos precisam: passou a desenvolver afinidade com eles, a família e os médicos, para planejar reuniões e discutir os melhores caminhos a tomar. "Porque se ficar restrito à escola manter essa organização, trabalhar com o estudante, e na casa não acontecer isso, nosso trabalho é anulado", explica.

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Professor Bruno explica que a profissão do docente chega a exigir mais que a carga horária comum. Foto: Luis Emanuel Fontana Calixto

            Para Bruno, atualmente professores de todos os segmentos estão sufocados pela demanda das escolas, o que causa um "apagão dos docentes". Problemas sociais acabam por cair sobre a educação pública e os profissionais não conseguem solucionar todos eles. Para ele, falta qualificação e motivação por parte do Estado. "Estamos com falta de professores. Os concursados já estão com a carga horária fechada. Chamamos os PSS’s e já esgotaram a lista, e a educação especial nem se fala", diz o professor.

            Bruno enxerga falta de incentivo para a docência. Tanto ele quanto os outros professores destacam o valor do profissional e acreditam que a imagem deste tenha diminuído com o passar dos anos, mesmo assim ainda permanecem na profissão pelo amor ao ensino. Cleverson comenta que os alunos do CEEBJA costumam estar a um passo de desistir, mas que é preciso incentivá-los. Torna-se necessário que essa paixão não seja usada como justificativa para que as dificuldades permaneçam, mas como combustível para reagir à situação atual dos professores no Brasil.

            Em Escritores da Liberdade, a professora Gruwell sofre as consequências de uma condição estrutural que não tem culpa, mas que a afeta. Ainda assim, ela decide permanecer. E, nessa escolha, está a outra face da educação que, apesar de desafiadora, também é humana, sensível e transformadora. Confira essa esfera da educação na segunda parte da reportagem abaixo.

O profissional da educação é apagado pela precarização de seu trabalho. Ilustração: Luis Emanuel Fontana Calixto

Uma carta para a liberdade

Esperança, o combustível da carreira de professores em tempos de apagamento da profissão.

"Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas

"O Pequeno Príncipe (1943)

            No longa-metragem Escritores da Liberdade (2007), dirigido por Richard LaGravanese, podemos acompanhar o poder transformador da educação. Em meio às brigas entre gangues, ao preconceito racial e aos traumas vividos pelos alunos, a professora Erin Gruwell (Hilary Swank) encontra espaço para a sensibilidade da escrita. Ela distribui diários para que os estudantes narrem e se tornem protagonistas das próprias histórias, motivados pelo exemplo de Anne Frank (adolescente vítima do Holocausto, lembrada pela divulgação póstuma do Diário de Anne Frank). Dessa forma, eles passam a identificar semelhanças entre as circunstâncias que vivem e a enxergar a realidade de outra forma.

            A paixão da personagem de Gruwell se repete por outras histórias reais e é neste aspecto que os docentes encontram forças para continuar a jornada, mesmo com todas as adversidades da profissão. Luci Maria Raibida, 63, trabalhou em sala de aula por 45 anos. Hoje, aposentada, cultiva as lembranças da profissão. “Eu gostava de trabalhar com os pequenos, na Educação Infantil. O retorno é muito mais visível, você vê que o seu trabalho deu resultado. É espontâneo, isso é muito gratificante”, comenta a professora.

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Em meio às dificuldades da profissão, Luci trabalhou por anos devido ao impacto da educação nos alunos.  Foto: Arquivo pessoal

             Ao longo da carreira, Luci ensinou em escolas rurais, nas quais os desafios estavam além da sala de aula, mas na gestão da escola, hortas e atividades do campo. Além disso, também trabalhou com os ensinos fundamental e infantil, nos quais teve suas últimas turmas antes da aposentadoria. “Decidi me tornar professora porque era a única opção que eu tinha onde morava, mas hoje, depois de tanto tempo, eu me sinto muito realizada. Eu faria tudo novamente. É uma coisa que nasce dentro de você, precisa querer continuar”, enfatiza.

             Assim como Luci Maria, a professora Vanina Roncaglio, 47, também enxerga o impacto da profissão nos discentes. Leciona num cursinho popular e vê que leva a esperança de que nunca é tarde para conquistar o certificado do ensino fundamental e médio. “Talvez as aulas não sejam o suficiente para uma aprovação na faculdade, devido à quantidade de tempo disponível com os alunos, mas com a certificação é possível que encontrem um cargo melhor onde estão trabalhando e a própria realização pessoal também”, destaca Vanina.

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No cursinho popular, Vanina reconhece as dificuldades dos alunos em face dos objetivos. Foto: Luis Emanuel Fontana Calixto

             Para o professor de ensino especial, Bruno Souza, 27, assim como na obra literária O Pequeno Príncipe (1943), do francês Antoine de Saint-Exupéry, a relação entre educador e estudante é de enorme responsabilidade. Adaptar os próprios horários ao aluno, manter contato com eles, com a família e com o médico que o atende excedem a profissão, mas que ao mesmo tempo faz parte dela. "Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas", cita Bruno, pois no momento que assumiu o cargo na educação, entendeu as responsabilidades que surgem com a profissão, assim como as recompensas. "O sorriso de um estudante, a conclusão de uma atividade que está com dificuldade em fazer. Dentro do ensino especial, mesmo que para os outros pareça algo mínimo, para nós [professores] é algo gigante", compartilha.

             Seja na educação básica, especial, cursinhos populares ou em iniciativas como a do Centro Estadual de Educação Básica para Jovens e Adultos (CEEBJA), a figura do professor é insubstituível. Deve se tornar uma das prioridades dos governos estadual e federal a busca por alternativas que valorizem o trabalho destes profissionais. Afinal, a marca deixada nos alunos perdura ao longo da vida, além de fornecer o necessário para que se construam enquanto pessoas.

             Para externalizar o valor transformador dos educadores, convidamos as pessoas a escreverem cartas que, assim como em Escritores da Liberdade, usem das palavras para expressar gratidão, desta vez, destinada aos professores que passaram por suas vidas. As cartas estão disponíveis no link abaixo.

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