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Quando a moradia se torna um risco

Heloisa Zolinger

Na busca por sobrevivência, a ocupação de áreas periféricas e irregulares, com baixa infraestrutura e exposta a diversos perigos, resulta na falta de acesso a serviços básicos

A moradia é um direito fundamental, assegurado na Declaração Universal dos Direitos Humanos. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 aborda o tema da habitação, mas foi apenas no início do século XXI que a moradia foi explicitamente incluída como direito na Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000. A habitação está associada ao princípio da dignidade da pessoa humana, essencial para uma vida decente garantida pelo Estado.

 

A professora do curso de Serviço Social da Unicentro e pesquisadora em direitos constitucionais, Nayara Bueno, aponta que as desigualdades sociais, raciais e de gênero se manifestam na falta de acesso à habitação de qualidade. 

 

A precariedade implica viver em áreas com risco de tragédias ambientais e, muitas vezes, distantes da área central, resultando em processos de exclusão social e violação de outros direitos sociais básicos. “Em sociedades desiguais como a nossa, é necessário o investimento em políticas públicas voltadas à efetivação do direito à moradia.Para isso, é indispensável a participação popular na definição de áreas e do formato das construções para que atendam às necessidades e os anseios das pessoas que irão ali morar. A garantia do direito à moradia envolve muito mais do que um espaço físico, carrega consigo sonhos, aspirações e vivências comunitárias que precisam ser consideradas pelo poder público”, salienta Nayara.

16 milhões de vítimas

Na busca por sobrevivência, a moradia se torna um perigo. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que mais de 16 milhões de domicílios no Brasil estão em assentamentos irregulares conhecidos como favelas, ocupações, grotas, baixadas, comunidades, loteamentos ilegais, mocambos e palafitas. Segundo a entidade, esses espaços são formas de ocupação irregular de terrenos públicos ou privados, caracterizados por um padrão urbanístico inadequado, carência de serviços públicos essenciais e localização em áreas que apresentam restrições à ocupação. As populações dessas comunidades vivem sob condições socioeconômicas, de saneamento e de moradias precárias. Além disso, as disparidades sociais e econômicas estão atreladas à desigualdade ambiental.

 

Segundo a professora do departamento de Geografia da Unicentro e pesquisadora em desigualdade no espaço urbano, Marquiana de Freitas Vilas Boas Gomes, um equilíbrio ambiental seria quando todos recebessem os proveitos e rejeitos do ambiente que produzem na mesma proporção. “O ambiente é resultado da sua dimensão físico-natural que combina com a forma como a sociedade dele se apropria. Ou seja, há uma apropriação social da natureza que transforma o ambiente. Isso sempre fez parte da história. A relação dos homens e das mulheres com a natureza sempre implicou em mudanças. Porém, na sociedade industrial e pós-industrial, o que há de novo é que a capacidade técnica e o modo de produção e consumo se globalizaram e, com isso, a transformação é planetária e, muito mais rápida e intensa, assim como é incompatível com o tempo necessário para que a natureza se recomponha”, destaca Marquiana.

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A concentração de renda em alguns bairros da cidade reflete na desigualdade socioambiental. O gráfico destaca a distribuição de renda nos bairros de Guarapuava. (Infográfico elaborado por Marquiana de Freitas Vilas Boas Gomes)

O resultado desse quadro é uma desigualdade entre países. A primeira opção das nações que detém maiores condições econômicas foi exportar as indústrias poluidoras para os países mais pobres, onde as leis são menos rigorosas e, em nome de um aporte econômico, se tolera a recepção dos rejeitos ambientais. Os que produzem e consomem muito exportam os resíduos para os locais mais vulneráveis.

 

No interior destas nações mais pobres, geralmente, há ilhas de prosperidade, grupos sociais que também detêm recursos econômicos e políticos capazes de escolher onde habitar. Por isso, pagam para morar longe das fábricas poluídas, rios malcheirosos ou aterros sanitários. Aqueles que não dispõem dos mesmos meios e não têm condições de pagar pelas amenidades ambientais acabam morando nas localidades menos valorizadas, justamente aquelas que estão próximas de situações potencialmente poluidoras.

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A qualidade ambiental engloba a avaliação da pureza do ar, da água e do solo, bem como a preservação da biodiversidade e a conservação dos recursos naturais. No gráfico, é possível notar a baixa qualidade ambiental nos bairros mais pobres da cidade. (Infográfico elaborado por Marquiana de Freitas Vilas Boas Gomes)

O processo não é novo

Para Marquiana, se tomarmos como exemplo o Brasil, podemos dizer que nos últimos 50 anos houve um processo de urbanização que conduziu a maior parte da população para as cidades, sem que estas tivessem infraestrutura para todos. Nas cidades, a terra urbana é mercadoria. Quanto mais bem localizado ou com melhor infraestrutura, mais caro é um lote urbano. Deste modo, o que sobra para as populações mais carentes são os espaços menos valorizados, alguns inclusive, não passíveis de serem ocupados, já que são áreas de risco de inundação, deslizamento de terras ou próximos a áreas muito poluídas. 

Sem ter outra opção, as pessoas ocupam essas áreas e ficam sujeitas ao risco e ao perigo. “As pessoas que moram nessas regiões são justamente os indivíduos que estão em maior vulnerabilidade social e sujeitas aos prejuízos ambientais, justamente porque não dispõem dos recursos para se prevenir de desastres ou para morar em locais de menor risco. Além disso, justamente por não dispor de meios econômicos, habitam os locais menos valorizados de uma cidade ou município, mesmo que isso lhe coloque em situação de perigo. Isso é um exemplo de desigualdade ambiental”, destaca Marquiana. 

A pesquisadora ainda sublinha o dever do Estado na promoção do equilíbrio ambiental e igualdade social. Para serem eficazes, as políticas públicas devem ser inclusivas, equitativas e focadas nos grupos mais vulneráveis. Além disso, devem ser implementadas com transparência e responsabilidade para promover justiça social. “As políticas públicas são instrumentos fundamentais para o enfrentamento das desigualdades sociais, mas sua relação com a desigualdade é complexa. Quando são bem concebidas e implementadas, as políticas públicas podem reduzir as desigualdades sociais, no entanto, quando mal planejadas ou executadas, podem exacerbar a desproporção. Problemas como concepção inadequada, má implementação, falta de recursos e clientelismo podem agravar as desigualdades sociais, perpetuando ciclos de pobreza e exclusão”, evidencia.

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A arborização urbana proporciona um ambiente mais puro e equilibrado. Neste gráfico, você percebe a falta de praças e parques, bem como espaços arborizados no Município. (Infográfico elaborado por Marquiana de Freitas Vilas Boas Gomes)

Para Marquiana, também é preciso garantir que leis já aprovadas, que tenham como princípio a justiça ambiental e social, não sejam alteradas para atender interesses exclusivamente econômicos e sejam fortalecidas e cumpridas. É necessário elaborar políticas que deem acesso às pessoas, independente da sua origem étnico-racial, renda e gênero, a moradias dignas e seguras.

O direito à moradia

A Constituição de 1988 exige que União, estados e municípios promovam programas de construção de moradias e melhorias habitacionais, garantindo a integração social dos setores desfavorecidos. “Podemos afirmar que a desigualdade social agrava o acesso à moradia digna ao limitar as oportunidades e os recursos disponíveis para as famílias de baixa renda. Isso acaba por perpetuar ciclos de pobreza e exclusão, dificultando a melhoria das condições de vida e a promoção da equidade social. Por isso, é essencial que as políticas públicas de habitação atendam às necessidades”, detalha o coordenador da Incubadora Social da Unicentro e pesquisador em direito à moradia, Anderson Roik.

 

Em Guarapuava (Paraná), o bairro Jardim das Américas é um dos mais vulneráveis do município. O local possui várias carências, agravadas pelo espaço sujeito à inundação, localizado na borda leste do rio Cascavel. No mesmo espaço, convivem pessoas em ocupações irregulares e loteamentos legais.

 

A gestão municipal não evita a ocupação da área de inundação, prevista no Plano Diretor do município de Guarapuava, na Lei n°. 016/2006. Entretanto, em 2018, reivindicou, através da justiça, a reintegração de posse do local que já era ocupado por famílias há mais de três anos. Em nota, a Prefeitura de Guarapuava informou que a ocupação das famílias ocorre em uma área de proteção ambiental. Segundo o comunicado, o terreno tem o solo hidromórfico, ou seja, é uma área de banhado, passível de inundação. Cerca de 40 famílias habitavam o local e precisaram se retirar. Posteriormente, foram realocadas para loteamentos próximos, por meio de um projeto municipal.

 

Com o Programa Vida Digna, famílias de operadores ecológicos foram realocados para unidades habitacionais mais seguras, localizadas em bairros com acesso a serviços essenciais e oportunidades de trabalho. Além disso, o programa oferece aos catadores acompanhamento social e profissional, para que possam se capacitar e conquistar novas oportunidades na sociedade.

 

O Secretário Municipal de Meio Ambiente, Vinícius Kaminski Milazzo, considera necessário o engajamento da gestão municipal em contribuir na nova realidade das famílias. "Morar em locais impróprios, sujeitos a alagamentos, deslizamentos de terra e outros perigos iminentes não é apenas um risco à vida, mas compromete o acesso à educação, saúde e oportunidade de desenvolvimento. Famílias que vivem sob a constante ameaça de desastres naturais perdem noites de sono e veem seus pertences destruídos", aponta.

 

De acordo com o Secretário Municipal de Habitação, José Airson Horst, as famílias selecionadas pelo Programa Vida Digna possuem diversas condicionalidades que fazem a intercessão com a Secretaria de Educação, Saúde, Assistência social, Desenvolvimento Econômico, Meio Ambiente e Habitação. “Muitos agentes de materiais recicláveis residem em áreas de ocupação precárias, sem acesso a infraestrutura básica, como água, luz e esgoto. Essa situação os expõe a diversos riscos à saúde e à segurança, além de dificultar o seu trabalho e a sua integração social”, sublinha. Além da moradia, a iniciativa transfere renda mensal às famílias no valor de R$220,00. A seleção dos participantes é feita através da análise do banco de dados do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS).

 

Leidy Daiane Amaral Melo é uma das operadoras ecológicas beneficiadas com o direito da casa própria pelo Programa Vida Digna. A jovem começou a trabalhar com reciclagem ainda muito cedo, aos sete anos. Como a família sempre foi muito pobre, a ocupação foi a única maneira de ter sustento. “Eu tenho 5 filhos, então eu me sentia uma mãe muito ruim. As casas eram muito precárias, a gente não tinha água potável e esgoto, e estávamos sempre correndo risco de sermos despejados”, conta.

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Aos 35 anos, Leidy Daiane já trabalhou com a catação, jardinagem e serviços gerais. (Foto: Heloisa Zolinger)

O loteamento também funciona para a separação dos materiais recicláveis coletados pelos moradores. Por esse motivo, a poluição marca presença nas residências e os resíduos estão tomando conta das ruas. A pequena casa de Leidy, que já apresenta rachaduras e infiltrações, abriga seis pessoas.“No começo, eu estava duvidando, porque eu tinha medo de que a vida fosse ainda mais difícil do que na área de ocupação. Mas, para minha surpresa, aqui é um lugar muito melhor para se viver. A gente tem acesso a água potável e esgoto. Eu gosto muito dos meus vizinhos, porque eu me vejo neles. Todos nós passamos pelo mesmo como catadores”, finaliza.

Confira a história de Leidy Daiane Amaral Melo:

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