top of page

Entre as quatro paredes da vida

Eliezer Kailer

A figura intensa de Sérgio Sampaio e a celebração de sua obra musical

            Sérgio Sampaio é uma daquelas pessoas que aparecem de tempos em tempos, que rompem barreiras e marcam a história. Para pessoas como ele, a história se encarrega de fazer jus àquilo que foram e é por esse motivo que esse perfil foi escrito. 

​            Sampaio inspira arte aos ouvidos atentos daqueles que o ouvem falar, seja através de suas canções ou nas mesas dos bares aos quais frequentava, sendo sempre a figura que chamava atenção e pedia a palavra quase que em uma espécie de monólogo de suas aventuras. Nascido em Cachoeiro do Itapemirim (ES), no dia 13 de abril de 1947, o mesmo dia que se comemora o dia do hino nacional e o dia do jovem, duas coisas que se fazem presentes em Sérgio Sampaio. A primeira delas, o hino nacional, não porque Sérgio tinha alguma ligação com ele ou algum senso patriótico militarizado, uma vez que sempre criticou a ditadura, mas porque ele também soube escrever um hino. Durante sua apresentação no Cabaré Mineiro em 1986, intimando a todos os presentes, disse: “pode cantar, os generais já foram dormir”. E assim puxou o hino que ele compôs, intitulado “Eu quero é botar meu bloco na rua”. A segunda é que Sérgio Sampaio sempre manteve a juventude viva em si mesmo, sendo reconhecido pelos que conviveram com ele como uma pessoa profunda e visceral.

​           No auge dos seus 25 anos, Sérgio lançou seu primeiro disco - e de maior sucesso - “Eu quero é botar meu bloco na rua”. O nome extenso também batizava a faixa homônima que se tornaria um hino cantado de norte a sul e de leste a oeste em todo Brasil. O sucesso, bateu à porta de Sampaio quando se apresentou com seus cabelos longos no Festival Internacional da Canção no ano de 1972, apresentando a faixa que dava nome ao seu primeiro trabalho. Neste mesmo disco, Sérgio gravava uma composição de seu pai, Raul Sampaio, que além de trabalhar em sua própria tamancaria era conhecido por ser o maestro da pequena Cachoeiro do Itapemirim, chamada Cala-boca Zebedeu. Sérgio lembra do episódio curioso, em uma antiga entrevista, anos antes de tornar-se músico, quando viu seu pai compondo a canção. “Eu deveria ter uns 15 anos quando vi meu pai compondo cala-boca zebedeu, quando sair pra ir ao banheiro fui assobiando a canção sem perceber e na volta meu pai disse ‘você tem um ouvido danado, eu ainda estou compondo e você já sai cantando pra lá’”. 

​       Durante a produção do primeiro disco de Sérgio Sampaio, um de seus grandes amigos ajudou na produção e nos vocais de apoio da canção “Viajei de Trem”, música que, segundo Sérgio, nem entraria no repertório, mas que este amigo insistiu até vencê-lo pelo cansaço, por acreditar no potencial daquela música. Anos antes, Sampaio apoiou esse companheiro a lançar seu primeiro trabalho, o que mostrava a forte amizade dos dois em se apoiarem no início de suas carreiras artísticas. Cerca de um ano antes de Sérgio lançar seu primeiro disco, ele participou como compositor e cantor de algumas faixas do disco Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10 lançado ao lado de Miriam Batucada, Edy Star e de seu amigo de longa data, Raul Seixas.

​       A nona música do disco de estreia de Sérgio Sampaio é  uma homenagem à sua mãe e na letra menciona.“O auditório aplaudiu, mas cuidado com a porta da frente. Dona Maria de Lourdes não espere por mim, que eu estou no paradeiro dessa gente. Quem morreu, quem teve medo, quem ficou?”, falando sobre os perigos da juventude em relação à ditadura militar em vigor ainda naquele período. Se por um lado essa música alertava a questões de perseguição por parte do governo em “Pobre meu pai”, Sérgio relembra quando mostrou o disco à Raul Sampaio que ele elogiou e comentou cada uma das músicas do disco até ouvir esta canção. Sampaio comenta que o silêncio ensurdecedor de seu pai ao final foi resposta a crítica que ele mesmo fazia sobre a liberdade tensionada e a relação com seu velho.

“Pobre meu pai, a marca no meu rosto é do seu beijo fatal 

E o que eu levo no bolso você não sabe mais 

E eu posso dormir tranquilo

Amanhã quem sabe”

(Pobre meu pai - 1972)

             Sampaio comenta que “é muito bom ter essa independência de não precisar falar a outra pessoa o que você carrega no bolso. Enquanto “Eu quero é botar meu bloco na rua” ecoava nos carnavais por conseguir escapar das garras de Durango Kid e tornar-se o maior sucesso do carnaval de 1973, as gravadoras arregalaram seus olhos no jovem artista, pensando em colher novos frutos tão estrondosos quando seu primeiro hit. Porém, devido à personalidade forte, difícil de lidar e com comportamentos longe dos padrões aceitos na sociedade, Sérgio sempre teve problemas com as gravadoras as quais esteve vinculado. Enquanto essas, junto às rádios e o público, esperavam e exigiam novos “blocos na rua” - quase como uma espécie de molde e padronização da figura do artista - Sérgio não atendia suas demandas, sendo visto como uma figura rebelde e que não se rendia aos padrões de mercado.​

            O “Sampaio Teimoso” presente anos depois na música - que lhe rendeu um apelido carinhoso de Velho Bandido - era um reflexo da pessoa que se negava a seguir as regras e demandas do mercado radiofônico brasileiro. Em “Roda Morta”, canção lançada anos depois de maneira oficial, Sérgio analisa a situação deste mercado que o tentava adestrar:

“O triste nisso tudo é tudo isso. 

Quer dizer, tirando o nada, só me resta o compromisso

Com os dentes cariados da alegria

 com o desgosto e a agonia da manada dos normais”

(Roda morta - 2006, lançada postumamente)

            Apesar do gênio revoltoso em relação a isso, Sérgio Sampaio é lembrado pela sua doçura enquanto ser humano com um carisma e uma simpatia inconfundíveis. Quando tocou em Manaus, havia um rapaz querendo falar com ele ao final do seu show. Esse jovem de olhos profundos e expressão forte, disse que não sairia do local enquanto não falasse com o artista. Por ser uma única pessoa, Sérgio então foi ao encontro do jovem que declarou: “eu quero dizer ao senhor que houve um tempo em minha vida em que eu queria acabar com ela, porém quando ouvi sua canção eu resolvi acreditar”. A música em questão chamava-se “Ninguém vive por mim” e contêm um trecho que menciona.

“ Fui tratado como um louco, enganado feito um bobo,

devorado pelos lobos, derrotado sim,

fui posto de lado e fui um marginal enfim

o pior dos temporais ainda aduba os jardins”. 

(Ninguém vive por mim - 1976)

           Com a perspectiva de vida mudada pela composição de Sérgio Sampaio, o rapaz acabou por contar que sua vida estava melhor, que agora se encontrava casado com uma boa esposa e que tinha um pequeno bebê chamado Sérgio Sampaio de Oliveira, em homenagem ao compositor. Emocionado com a história, Sérgio foi pego de surpresa ao ser convidado para apadrinhar a criança, que no ato aceitou, dizendo não se importar com a religião, a data ou o horário, mesmo que se tivesse de deitar nu no chão, ainda assim o faria, já considerando o fã como seu compadre.

​        Com os lançamentos de outros materiais, Sérgio Sampaio acabou saindo dos holofotes, mas não deixando de ser reconhecido. Por ser um artista ímpar junto a outros do seu tempo, como Jards Macalé, Luiz Melodia e Tom Zé, a imprensa se via refém de não conseguir enquadrá-los nos tradicionais rótulos da música popular brasileira, dessa forma, criou-se a alcunha de “malditos da Mpb”, como uma tentativa de categorizá-los, mas que acabava por estigmatizar por meio do peso da palavra maldito.

​          Em suas canções, Sérgio Sampaio sempre abordou temas que refletiam sua própria existência assim como suas experiências. Em “Nem assim”, o compositor aborda as questões de um relacionamento falido: “você pode me dizer tudo que quiser de mim, que nada do que diga me fará voltar”. Sérgio cantou essa canção para uma de suas ex-mulheres, que acreditou piamente que a música tinha sido escrita por ela, mas que foi negada pelo compositor, que disse que a música era o resultado de vários relacionamentos, não só dele, mas de pessoas que ele também acompanhou, dizendo que a mulher da música de fato não existe. 

“Pode inventar mentiras e até publicar, 

dizer que eu não sirvo mesmo pro amor, 

Que eu sou um narcisista e um mal compositor, 

Que se eu morrer agora ninguém vai chorar, 

Que os vícios da cidade toda estão em mim. 

Enfim, que foi você quem me abandonou”. 

(Nem assim - 1980)

             Os vícios que Sérgio Sampaio menciona na música, fazem menção a outro companheiro que não seu violão, o álcool. Para algumas pessoas, bem pontuais, Sérgio era o bêbado chato do bar, folgado e insuportável por monopolizar a fala, não permitindo a ninguém o mesmo direito. Porém, para outras, como Seo Geraldo e Dona Conceição, proprietários de um dos bares em Vitória (ES) que o músico frequentava, o músico era um dos amigos fiéis e que sempre esteve ali, mesmo quando não estava presente, mas que sua música tocava pelas caixas espalhadas no bar.

​             Como um bom ariano, a figura quente de Sérgio Sampaio, ocupava o espaço todo e não era nem de longe introspectivo. Sua forma de falar é quase como uma declamação de algo que soa para além de uma resposta ou comentário, algo mais profundo e sereno que transformava em uma plateia atenciosa, aqueles que sentavam com ele à mesa. Seu amor pela música era tão grande que, mesmo sendo quem era, se o violão estivesse com ele qualquer um ao seu redor receberia o presente de vê-lo tocando e cantando mais como amigo do que até mesmo como artista e sua aura. Para além do Velho Bandido artista e do Sampaio da vida boêmia, havia um Sérgio acessado por pouquíssimas pessoas como Mara, sua irmã caçula, cuja relação de cumplicidade e afeto revelavam um Sampaio carinhoso, atencioso e que se preocupava com a irmã mais nova, fazendo questão de sempre que estivesse em Vitória fosse a visitar.

​           De um outro lado, encontrava-se também um Sérgio Frustrado de não conseguir cumprir com um pedido de um conterrâneo de Cachoeiro de Itapemirim. Este outro capixaba, solicitou a Sérgio uma canção de amor para um disco que estava lançando, mas  mesmo com um violão na mão, nada parecia ser criado por Sampaio que se questionava: “será que eu fiquei tão burro?”. Ao desistir e ir tomar banho, Sérgio teve como inspiração escrever uma música sobre sua incapacidade em escrever uma música para seu ídolo cantar. Assim nasceu, “Meu pobre blues”, canção que questionava Roberto Carlos em alguns pontos e abordava a frustração de Sampaio em tentar escrever uma canção. 

“Eu juro que tentei compor uma canção de amor, mas tudo pareceu tão fútil. 

Agora que esses detalhes já estão pequenos demais, 

Até o nosso calhambeque não te reconhece mais. 

Eu trouxe um novo blues com cheiro de uns dez anos atrás e penso ouvir você cantar”.

(Meu pobre blues - 1974)

              Enquanto Roberto Carlos se adaptou aos moldes do mercado e o abraçou, tornando-se essa figura da realeza da jovem guarda, Sérgio acabou sendo injustiçado pelo pouco reconhecimento, segundo os capixabas. Sua obra é guardada por muitos como uma pérola preciosa e que não é tão popular, virando uma espécie de tesouro secreto para muitos fãs.

​          Na década de 1990, Sérgio Sampaio passou uma temporada no estado da Bahia e conviveu com o amigo Xangai, que mais tarde tornaria-se padrinho de seu único filho. Nessa época, Sampaio conseguiu deixar os anos de consumo excessivo de álcool e se libertar da doença. “Eu só toco com você, só faço shows ao seu lado se você parar de beber”, convencendo Sérgio, Xangai influenciou diretamente na recuperação do músico, que agora tornava-se pai de um menino. Resignado, Sérgio parte do nordeste para São Paulo para gravar aquele que viria a ser seu quarto disco de estúdio. Nesse meio tempo, passou uma temporada em Vitória na qual fez shows na Universidade Federal do Espírito Santo e gravou algumas músicas em estúdios do Rio de Janeiro.

​          Antes de chegar ao seu destino final, maio de 1994, Sérgio Sampaio é arrebatado por uma crise de pancreatite crônica, causada pelos anos de consumo excessivo de álcool e cigarro somados à sua má alimentação. Ainda quando estava em Vitória, Sampaio havia comentado sobre dores nas costas que havia sentido há um tempo. Após ser levado no hospital pela primeira crise, ficou internado em estado grave precisando de oxigenação, porém, os cuidados médicos acabaram sendo insuficientes pela vida que Sampaio vinha levando e o que custou sua vida no dia 15 daquele mesmo mês.

​           Sérgio Sampaio é como o enxadrista Mikhail Tal, mas dentro da música brasileira. Como oitavo campeão do mundo de xadrez, Tal é lembrado enquanto uma pessoa amorosa e que amava aquilo que fazia de uma maneira que conquistava quem assistia suas partidas. Sampaio e Tal não são os mais conhecidos ou até devidamente reconhecidos em suas respectivas esferas, mas com toda certeza, quem conhece sua arte, é atravessado por algo intenso e que atinge o âmago do ser humano - minimamente - sensível. 

​            O Velho Bandido não negava o sofrimento e é lembrado como essa figura intensa, influenciando não só pela parte artística, mas sentimental do “vir a ser” enquanto alguém marcante. Não há música que fale melhor de Sérgio do que “Adiante”, que foi reconhecida até por ele mesmo como uma de suas mais profundas autorrepresentações.

“Embora eu siga adiante,

Eu sempre fico onde eu passo,

Eu sempre deixo um pedaço de mim,

Embora eu siga adiante.

 

E quando eu sigo adiante,

Eu levo comigo um bem,

Que é sempre um bem do meu migo

Junto com o migo de alguém”

(Adiante - 1978)

bottom of page