
Beatriz F. Viana e Alisson Batista
Saúde mental no século XXI: a importância de cuidar da mente para usufruir de uma boa qualidade de vida
Reconhecer sintomas, ter uma rede de apoio e procurar ajuda profissional são essenciais.
A correria do dia a dia parece inofensiva, pois em seus estágios iniciais, não são uma preocupação iminente para a pessoa que vivencia, mas com o tempo o desgaste físico e mental vem à tona, causando ou evidenciando possíveis transtornos mentais. Além disso, os transtornos mentais podem ocasionar doenças psicossomáticas e físicas.
Mesmo antes da pandemia, o Brasil era o país com maior prevalência de transtornos mentais. Segundo um estudo de 2017 da Organização Mundial da Saúde (OMS), 18 milhões de brasileiros sofriam com algum tipo de distúrbio. Isso equivalia a 9,3% da população. A depressão afetava 12 milhões de pessoas no país, sendo a maior incidência da América Latina. E tudo indica que esses distúrbios psicológicos só se agravaram depois da pandemia.
De acordo com informações de uma pesquisa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), do Campus de Ciências Biológicas e da Saúde II, houve aumento de 90% nos casos de depressão entre março e abril de 2023. Já os episódios de crises de ansiedade e sintomas de estresse agudo quase dobraram no mesmo período. Do mesmo modo, um levantamento feito pela Associação Brasileira de Psiquiatria no primeiro semestre do ano passado afirmou que os médicos associados apontaram 82,9% no agravamento dos sintomas dos pacientes depois do início da pandemia. Já os atendimentos psiquiátricos tiveram aumento de 25%.
Bicho de Sete Cabeças
Com o passar das décadas, sabe-se que os transtornos mentais não são uma mazela da sociedade atual, mas sim algo que vem prevalecendo ao passar das gerações. Nas décadas de 1960 e 1970, o tratamento e o comportamento da população diante daquele que passava pelo transtorno mental era diferente. O filme brasileiro Bicho de Sete Cabeças (2000) retrata essa condição. O enredo é estrelado por Rodrigo Santoro (Neto), Othon Bastos (Seu Wilson), Cássia Kiss (Meire), Caco Ciocler (Interno Rogério) e Luís Miranda (Enfermeiro Marcelo), inspirado na biografia de Austregésilo Carrano Bueno, denominada Canto dos Malditos, e dirigido por Lais Bodonzky.
O filme conta a história de Neto, um jovem que possui desavenças com os pais, por serem conservadores. O adoslescente acaba não se encaixando no modelo de vida que o pai idealiza, ocasionando mais atrito entre eles. Ao mesmo tempo, o jovem procura ter aceitação social, especificamente entre um grupo de amigos. Por isso, ele começa a usar maconha, consumir bebidas alcoólicas e ter atitudes de um delinquente.
A falta de diálogo de Neto e os pais desenvolve uma relação de desconfiança entre eles, e o auge de toda essa problemática inicia quando o pai encontra um cigarro de maconha no quarto do filho. Com isto, a família é tomada pelo medo de perder o controle sobre ele, e então decide interná-lo em um manicômio, sem consentimento do rapaz. Esta atitude é justificada como forma de ‘‘reabilitação” para a suposta dependência de drogas e que o comportamento impulsivo e rebelde do adolescente fosse tratado.
Quando Neto chega ao hospício, quando os pacientes dão entrada, é mostrada uma realidade totalmente diferente para os familiares, pois os administradores da instituição tinham o objetivo de transmitir atitudes tranquilizadoras à família. Porém, o que realmente ocorria era o oposto. Os pacientes, incluindo Neto, recebiam um tratamento completamente desumano. Os internos viviam maltratados, ficavam sujos, não se alimentavam bem e recebiam choques de “tratamento”, como forma de retaliação para os mais rebeldes que falhavam na tentativa desesperada de fuga. Este procedimento resultava na perda de consciência dos internos e os deixavam delirantes.
Neto e os demais pacientes eram obrigados a consumir medicamentos sem consulta e diagnóstico. Os remédios tinham a intenção de fazer os internos engordarem, para dar a falsa impressão aos seus parentes de que eles estavam em boas condições e o tratamento progredia. Não se pode deixar de esquecer que o personagem principal tinha sido internado para tratamento de dependência química, só que ele era tratado da mesma maneira como os pacientes diagnosticados com transtornos mentais, recebendo medicamentos e tratamento de choque sem ao menos ser avaliado por um médico.
A corrupção também é um dos fatores que corrompem o sistema manicomial retratado no longa, quando o único médico na instituição deixa claro seu interesse apenas no recebimento de verbas fornecidas pelo Governo, ao afirmar que é preciso a chegada de mais pacientes, mesmo aqueles que não possuem transtornos mentais. E também explicita a falta de empatia dos enfermeiros pelos pacientes.
Em um dado momento, Neto consegue, finalmente, sair da instituição, porém sequelas de toda tortura psicológica e física sofrida por ele, são evidentes. O tratamento que resultaria em uma melhor inclusão social, controle do vício nas drogas e uma melhora dos maus hábitos comportamentais só resultaram em um olhar vazio, ausente vontade de viver e outras atitudes opostas à sua antiga personalidade. Ele não tem mais autocontrole devido à medicação sem orientação e choques elétricos. Em uma festa, acaba se alterando, agindo de forma incontrolável. Assim, o jovem é novamente internado e passou por todo o processo. Por fim, o personagem tenta cometer suicídio ateando fogo dentro da solitária.
O enredo é uma crítica à sociedade que aponta “erros” e escancara o processo de tratamento psiquiátrico que perdurou no Brasil até a Reforma Psiquiátrica, pela Lei 10.216, de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais. Ademais, o protagonista Neto, de O bicho de sete cabeças, não precisaria ter sofrido no manicômio se houvesse um bom convívio e diálogo entre ele e seus pais ou se eles tivessem mantido em diálogo com o filho antes de interná-lo à força. Mas a decisão de resolver o “problema” imediatamente acarretou em maiores e irreversíveis danos mentais ao jovem.
O serviço de saúde mental no século XXI
Como representado no filme Bicho de Sete Cabeças, a única solução, na época, para pessoas com transtornos mentais era interná-las em manicômios. A terapia por meio de choques era usada, muitas vezes, como uma poderosa arma de punição contra os que não se comportavam, e remédios eram ingeridos pelos internos, sem uma consulta médica. Assim, o lugar acabava funcionando como um depósito de pessoas consideradas inaptas para viver em sociedade.
Segundo o psicólogo Silvio Ortiz, os manicômios sofreram alterações nos últimos anos. Em 2002, o Ministério da Saúde determinou a criação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) como substitutos aos hospitais psiquiátricos, pois a funcionalidade do local passou deixou de ser hostil e inadequado. “Geralmente os internamentos são em último caso, temporário, em clínicas especializadas ou hospitais para garantir a segurança dessa pessoa”, comenta. Ele cita um exemplo: “digamos que a pessoa está em altíssimo risco de suicídio e a família não tem condições de cuidar, porque o indíviduo não vai obedecer o familiar ou a estrutura de rede de apoio não comporta atenção 24 horas por dia. Então essa pessoa passaria alguns dias num internamento para poder diminuir essa crise e controlá-la. Os internamentos são mais técnicos, sempre visando a garantia de vida do paciente”.
O tempo de internação varia para cada pessoa. Algumas situações são extremas, pois o indivíduo precisa de curtos internamentos, para poder afastá-lo do perigo. Independentemente, o hospital fornece todo subsídio, que é um suporte para a recuperação e reabilitação desse paciente. “Os processos clínicos realizados dentro dos hospitais são relacionados à área médica – na parte de medicamentos e diagnóstico – e há suporte psicológico, como acompanhamentos psicoterapêuticos individuais, trabalho de grupo para compartilharem experiências, com a intenção de ver outras pessoas passando por aquilo e terapia ocupacional. Todas essas atitudes proporcionam à pessoa um processo de tratamento mais saudável”, detalha Silvio.
De acordo com o Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, o modelo público de assistência de saúde mental no Brasil é feito através da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que estabelece pontos de atenção para o atendimento de pacientes com transtornos mentais ou problemas com drogas e bebida alcoólica. Trata-se de um modelo de base comunitária, bastante presente nos municípios. Fazendo parte do Sistema Único de Saúde, a RAPS é composta por Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), Centros de Convivência e Cultura, Unidade de Acolhimento (UAs) e leitos de atenção integral, que podem ser em hospitais gerais ou nos chamados CAPS III.
O modelo privado de saúde mental no Brasil também não atende as expectativas dos pacientes. Faltam leitos e médicos psiquiatras que atendam planos de saúde. E, como as consultas psiquiátricas levam um pouco mais de tempo, muitas vezes o convênio não aceita pagar mais. Em alguns casos, o paciente se vê obrigado a trocar de profissional, precisando recomeçar o tratamento. Em outros, o tratamento acaba sendo descontinuado, o que pode acarretar no agravamento da doença. Isso faz com que muitos que têm plano de saúde recorram a profissionais que atendam apenas de forma particular.
No Município de Guarapuava (PR), o serviço público é prestado pelo CAPs, como explicitado acima. Para conseguir ser atendido no CAPs II, é necessário seguir ao posto de saúde mais próximo à residência do paciente e passar por uma avaliação médica, por meio de questionário sobre o grau da saúde mental. Este teste é dividido em dois níveis, I e II de baixo risco – o paciente é tratado no posto de saúde. Já o estágio III é considerado o mais crítico. A partir daí, o paciente é encaminhado para o CAPs.
Os sintomas mais comuns e como buscar ajuda

O psicólogo Silvio Ortiz fala sobre saúde mental. Foto: Arquivo pessoal
Atualmente existem profissionais especializados, como o psicólogo Silvio Ortiz, para auxiliar as pessoas a passar pelo processo de transtorno mental, aconselhando com tratamento correto e auxiliando o paciente a ter um suporte familiar, já que esse é um dos principais elementos. “Uma das coisas que os profissionais sempre repetem é que as pessoas da rede de apoio não façam juízo de valor, não julgue, porque só quem passou ou passa por um transtorno mental severo entende que escovar os dentes, levantar, tomar banho são ações que descarregam um caminhão de pedras, algo que exige muito esforço, muita energia, muito empenho”, complementa.
A pessoa que tem algum transtorno mental, diminui a capacidade de sentir coisas boas e potencializa tudo que é negativo, deixando que a desesperança cresça significativamente em seu corpo e tudo ao redor. Por isso que o suporte familiar ou de amigos é importante, para que o indivíduo se sinta acolhido. “Hoje em dia, ainda existe um tabu a respeito da saúde mental e que muitos se sentem reprimidos por dizer que estão passando por problemas, até mesmo para a família”, comenta Silvio.
Os transtornos mentais mais recorrentes são a depressão e a ansiedade. Outros vieram a aumentar, como Transtorno do Espectro Autista (TEA), Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), Esquizofrenia e Transtorno Bipolar. Isso ocorre porque não havia clareza a respeito do que era passar por um problema de saúde mental. Hoje em dia, o diagnóstico é mais perceptível do que antes. “Os sintomas mais comuns de serem observados são quando há mudanças bruscas de comportamento, ações que causam problemas e dificuldades cada vez maiores, a pessoa parece encolher, quer dizer que vai perdendo a vontade de fazer coisas que gostava”, explicita o psicólogo.
Quando há conhecimento por parte da família ou da própria pessoa, de que ela está passando por mudanças de comportamento, a primeira coisa que ela deve fazer é procurar ajuda profissional, podendo ser um psicólogo ou um psiquiatra. “Eu vou dar uma dica que eu considero preciosíssima e que, às vezes, não é difícil de ser implementada, não é difícil de ser detectada e não se fala muito disso. Eu digo que 80% do que eu faço na clínica é trabalhar melhor a comunicação entre as pessoas. Grande parte dos problemas que a gente vai tendo ‘é porque eu não falei que aquilo me incomodava e eu enfiei pra baixo do tapete’. A comunicação é uma atitude fantástica, principalmente por ser assertiva. Uma pessoa assertiva tende a levar uma vida muito mais equilibrada, porque as pessoas não vão invadindo a vida dela, por ela ter uma boa capacidade de posicionamento. Assim, esse seria, digamos, um pilar fundamental, junto ao pacote das boas práticas, como atividade física, boa alimentação, meditação e sono de qualidade”, finaliza o profissional.
Histórias de vida contada por Elza e Sarah: a luta diária ao conviver com um transtorno mental
O transtorno mental é uma disfunção da atividade cerebral que pode gerar ações que prejudicam a saúde emocional e física. Tais distúrbios podem afetar o humor, o comportamento, o raciocínio, influenciar na concentração e memória e, muitas das vezes, pode afetar os laços familiares. Esses problemas surgem por causas diversas e afetam pessoas de diferentes idades.
Dona Elza, 50, mora em um assentamento quilombola, mas não é uma quilombola. Ela comprou um pedaço de terra e foi viver na paz do campo. A sua história de vida é marcante do início ao fim. Sara, 25, foi diagnosticada com bipolaridade aos 20 anos. O auge do transtorno mental ocorreu quando sentiu um descontrole maior, por ter horas em que estava totalmente depressiva e outras muito impulsiva. Ao receber o diagnóstico, ela diz que conviver com bipolaridade é muito mais fácil, por saber o que tem e que as coisas não são culpa dela.
Para saber por completo sobre a história dessas mulheres guerreiras que vivem com um transtorno mental que não tem cura, só controle, seja por medicamentos prescritos por médicos ou feitos em casa com ervas medicinais, acesse o link abaixo, na segunda parte desta reportagem.
A saúde mental não é algo com que se brinque, procure ajuda de um profissional e não deixe que o transtorno mental tome conta de você. Se necessário, fale com um dos nossos voluntários do Centro de Valorização da Vida. O atendimento é gratuito 24h por dia pelo telefone 188 ou pelo site cvv.org.br, nos seguintes horários: dom (17h a 1h), segunda a quinta (9h a 1h), sexta (15h às 23h) e sábado (16h a 1h).