Daniel Simon e Eliezer Kailer
Quase famosos: as fronteiras do underground de Guarapuava
Veja como o filme Quase famosos serve de inspiração para examinar a cultura da música independe de Guarapuava.
“O que a música significa para você?” é a última fala de William Miller, um precoce jornalista que, ainda aos quinze anos, recebe a oportunidade de acompanhar a banda favorita, Stillwater, em uma última turnê antes de o grupo se separar. Essa é a história de Quase Famosos (2000), dirigido e escrito por Cameron Crow. Ao estrear nos cinemas, o sucesso foi imediato. Na premiação da academia, Quase Famosos terminou a noite com quatro Oscars. Mas uma pergunta se faz necessária, como um filme sobre a cultura musical da década de 1970 foi tão impactante para a audiência da virada do milênio?

Cena do filme Quase Famosos (2000), IMDB: “Se você acha que Mick Jagger ainda estará por aí tentando ser um astro do rock aos cinquenta anos, você está muito, muito enganado”.
A resposta é até simples. Crow (que ainda guarda a estatueta de Melhor Roteiro Original) escreve sobre universalidades do mundo da música. William, o protagonista, é um amante de um universo underground. Após passar horas do dia revisitando álbuns e LP’s em lojas, o garoto decide escrever artigos e críticas musicais que, sem muita ambição, envia para a Rolling Stone. Para o espanto de William, as matérias são publicadas e, ainda mais chocante, são um sucesso. A revista, sem saber que o autor é apenas um garoto, decide convidá-lo para acompanhar Stillwater, a banda favorita de William.
Lembra da universalidade da música? Então, independente da época, grupos do underground podem se simpatizar com os conflitos do filme, já que muitos permanecem os mesmos até hoje. Stillwater anda em uma corda bamba, suspenso entre a esperança do reconhecimento do grande público ou, mais certamente, do completo ostracismo. Essa dicotomia é sempre presente na formação de bandas e grupos musicais, mesmos nos menos obstinados. Validação é algo mágico na música, e muitos acreditam que só podem alcançá-la por gravações e shows. Para alguns, o humilde começo do underground é um purgatório — um caminho para a transcendência — para outros, no entanto, já é um paraíso. Embora esses artistas prefiram chamar de inferno, por motivações estéticas.

Cena do filme Quase Famosos (2000), IMDB: “Eu não inventei o dia chuvoso, cara. Eu só tenho o melhor guarda-chuva”
Os quase famosos de Guarapuava
A cena musical de Guarapuava, interior do Paraná, é rica e diversa. No rock, mesmo que aos ouvidos do leigo as nuances metalúrgicas do metal pareçam não existir, há uma diversidade rica em gêneros e artistas com vozes únicas, literal e metaforicamente. Ao longo dos anos, esse cenário foi se expandindo, acomodando novos gêneros e identidades. A cena musical vive de inspiração, conforme retornamos ao passado, vemos como grupos atuais foram motivados por bandas ainda mais antigas. Algumas nem mais existem, mas deixaram sua marca.
Essa é a memória de Mackey Pacheco, guitarrista dos Kingargoolas, um dos grupos mais longevos e importantes da cena guarapuavana. O músico também se recorda, ainda garoto, como a vontade de ter uma banda surgiu antes de tudo. “Veio antes de saber tocar um instrumento, eu montava as bandas na cabeça, tanto que desenhava elas no caderno”, relembra o guitarrista. Nas páginas em branco, Mackey fabulava visuais únicos para os grupos imaginários, quais músicas tocariam e os nomes, é claro. “Se eu me lembro delas? É claro. Tinha a Espinha de Peixe, por exemplo, era uma banda de metal, mesmo. Era para ser um trio”.

Mackey Pacheco: “A gente gravou, e lançou, dois discos. Um EP e um LP“. Foto: Eliezer Kailer
“Quando eu tinha acho que uns oito anos, o meu irmão mais velho chegou em casa um dia com um disco compacto, que era uma banda da cidade. Eles se chamavam os ‘Infiéis’, eles chegaram a gravar o compacto com uma música própria e iam fazer um show num lugar que era um cinema, na época. Eu tinha uns oito anos, mas aí meu irmão pediu para minha mãe e ele me levou. E era aquela coisa, a galera tocando alto! Banda de rock, né? Eu fiquei ‘uau’, isso é legal”.
A teatralidade e criatividade foram fundamentais na confecção da real banda de Mickey, que ultrapassou as barreiras da imaginação. “Era muito um lance fazer a nossa banda, nossas músicas autorais, desde crianças”, conta Mackey. No primeiro show, alguns minutos antes da estreia definitiva no palco, a criança interior de Mackey voltou aos dias de devoção à banda Kiss. Mesmo com vergonha e medo que sua ideia fosse descartada de imediato, Mackey queria trazer uma mística para o grupo. Na loja de bugigangas mais próxima, encontram as máscaras, parafernálias tão simples que passaram a acompanhar o grupo desde então. “A gente subiu no palco e a galera riu, ainda bem que nós estávamos de máscaras, ou teria dado uma vergonha”.
O que pode soar absurdo para alguém que não tenha contato com o gênero, em realidade é algo super comum. Grupos, por natureza, buscam transmitir uma aura: uma estética particular a qual os fãs podem incorporar e se identificarem por ela. De volta ao filme Quase Famosos, Stillwater é um banda fictícia, um grupo imaginário que Crow, o diretor, usa para examinar as dinâmicas da época e da indústria do entretenimento. Fora dos palcos, onde performam em perfeita sintonia, um grupo é um desarranjo de opiniões e rancores, para a decepção de William.
A disputa de ego chega, em vários momentos, a ameaçar um fim prematuro ao grupo, antes mesmo do encerramento da turnê. Esses episódios, é claro, são seguidos de reconciliações emocionantes, a mais famosa delas, ao som de Tiny Dancers. O que mantém a banda reunida, Crow deixa claro, é a devoção dos fãs, que surgem aos montes em todas as cidades por onde param, e as groupies no próprio ônibus do grupo. Mackey se lembra das próprias turnês e da sensação de encontrar admirados nos locais mais imprevisíveis. “Nós fomos convidados a tocar na Itália, no maior evento de Surf Rock da Europa, e fizemos outros shows por lá”. Uma das memórias mais especiais é a de um fã, na Bélgica, que havia viajado de bicicleta para outra cidade, só para ver o grupo brasileiro.
Quase Famosos fala muito sobre a admiração ao público. Antes de ser um jornalista amador, William, de fato, era só um fã. E muitas das desilusões de nosso protagonista nascem do fato de que toda banda é formada por pessoas. Pessoas são imperfeitas e William precisa lidar com isso. Stillwater é uma ficção, é claro, mas qual banda não é?
Novos Começos
O filme termina com o desmantelamento do grupo. De fato, os egos dos integrantes eram demais para uma só banda. Inicialmente, a matéria de William – intitulada “Quase Famosos” – é desmentida pelos músicos, ressentidos das verdades que o jovem decide não omitir. Claro, em um final hollywoodiano, a banda tem uma comoção e decide admitir que tudo que William escreveu era verdade. Stillwater, mesmo no universo do filme, não consegue alcançar o ápice de outras bandas do período, como Led Zeppelin e Black Sabbath.
Esse é o destino da esmagadora maioria dos artistas, muito mais do que 99% dos grupos nascem para desaparecer. Para muitos, isso pode parecer uma realidade cínica. Para outros, no entanto, é um desprendimento das expectativas. Uma oportunidade de liberdade sem compromisso.
No tempo de Mackey, “quando a cena ainda era mato”, não havia uma presença forte de grupos autorais em festivais, shows ou estabelecimentos comerciais. No máximo, contou o guitarrista, eram covers de grupos conhecidos. Os esforços da geração dos Kingargoolas pavimentou o caminho para novos grupos, que podiam surgir com mais oportunidades. Outra banda marcante de Guarapuava, a Ultra Violent, começou já nesse contexto. “Eu pensava que poderia contribuir e complementar a cena, abraçar a galera da minha época a ser representada”, comenta Guilherme Rocha, guitarrista e vocalista.
Uma figura carimbada do universo alternativo na cidade, a Ultra Violent é oriunda do hardcore e do metal, “gêneros que não estavam muito presentes aqui”, lembra Guilherme. Fãs que ansiavam por bandas parecidas em Guarapuava, logo gravitaram até o grupo dele. Não foi a primeira experiência como músico, nem mesmo a primeira banda. Anos antes, Guilherme já havia integrado um grupo, do gênero do Emocore, Cold Feelings, e até mesmo gravado uma música no vocal. A experiência acumulada foi crucial, uma vantagem em um centro regional do rock independente.

Guilherme Rocha: “A gente tocou em cada buraco”. Foto cedida Facebook.
A continuidade da cena depende da troca de conhecimento, da passagem de tradições e das experiências aos novos grupos que vão surgindo, preenchendo as lacunas das bandas que se despedem. Essa é uma lição que os membros da Stillwater não aprenderam e, por isso, o fim do grupo é tão amargo. Para eles, a experiência na música é uma realização de fantasias pessoais. O filme brinca com a possibilidade de que a banda realmente existiu, mas foi aos poucos sendo esquecida. E assim realmente ocorre no mainstream, mas não no underground.
Antes da Ultra Violent, Guilherme já ouvia o Kingargoolas de Mackey. Um padrão de continuidade que se repete até nas bandas mais novas que, com sorte, serão as “bandas velhas” de uma nova geração.
“Uma banda que da cidade que me inspirou? Eu lembro do show da Ultra Violent, lá no Servicar. Foi o primeiro show que me inspirou, eu tinha 16 anos, foi em 2011. Foi o primeiro show que vida na vida”Guilherme, baterista da banda Os Frentista.
Descubra mais da história do underground local na segunda parte da reportagem no link abaixo: